quarta-feira, outubro 16, 2013

monotemática

Tento desacelerar. Dentro de mim, você, meu filho, pacientemente a se formar. Devagar, meditativo, deixando que cada célula tome o seu destino específico. Eu, aqui fora, correndo. Invento atividades porque já não me lembro mais que um dia fui, como ti, um projeto em formação. Deixo - adulta - a preocupação com o que esperam e também com o que espero de mim tomar minha mente. Fico ansiosa pensando no trabalhar, no criar mil projetos, no descobrir a fórmula mágica de ganhar muito dinheiro sendo artista. Tentando preservar minha porção mulher trabalhadora e independente; acelerada e apressada penso nas grávidas que já conheci. Concluo: não sou uma grávida que vira cambalhotas e bebe vinho. Sou eu - exultante, preocupada, extasiada com meu menino dentro de mim, assustada e monotemática. Serei mãe de um menino - já sou, sinto assim a cada rodopio que você dá dentro de mim. Deixarei, nesse momento, as cambalhotas para ti em líquido amniótico. E pegarei emprestada a paciência e sabedoria do meu bebê yogi em fase de auto construção.

quinta-feira, outubro 03, 2013

mãe

Enquanto gero você, trato de gerar a mim mesma. Pernas, cérebro, cabeça, nariz, olhos e orelhas parecem ser mais fáceis de serem criados, arranjados e orquestrados do que encontrar lugar tranquilo para as milhares de novas vozes que escuto dentro de mim. Vozes antigas, ancestralidades agora descobertas, vozes jovens e desconhecidas, crianças, principalmente meninas, falam dentro de mim. Algumas bonitas e outras frágeis se confundem por aqui. A curiosidade e ansiedade pelo que será minha nova vida deixam meu coração delicado. O medo, a beleza e a certeza de que além de uma criança, nasce uma outra pessoa. Um eu mesma que ainda desconheço. Um eu mesma que aprenderei a amar e cuidar. Um eu mesma que já não é mais sozinho. Criando você dentro de mim, descubro uma outra pessoa. Eu te crio e você, ainda um montinho delicado de células, cria a mim.

sexta-feira, abril 26, 2013

polaco

O mendigo parecia um polonês. Sentado no banco redondo de pedra, no meio da praça, meditava dentro de si. Estava calor, mas o mendigo polaco permanecia encapotado num pesado sobretudo preto. De barbas brancas e cabelo loiro acinzentado perdia-se no vazio. Outros mendigos moravam na praça; negros, brancos e conversavam entre si. O mendigo eslavo não falava e nem olhava para ninguém. Perdido dentro dele mesmo, era como se estivesse numa outra praça, num outro tempo, bem distante dali. Meus olhos não queriam deixar de vê-lo. Minha tristeza também estava ali na beleza daquele mendigo inadequado no meio da confusão. Passando sozinha pela praça, minha alma fisgou a do mendigo. Quis sê-lo. Voyeur daquele outro. Então, o mendigo olhou para mim. Envergonhada, desviei o olhar ao saber que minha observação preenchera aquele vazio.