domingo, fevereiro 28, 2010

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Já fui enterrada viva. E já enterrei vivas algumas pessoas que passaram por mim, o que é muito pior. Fui enterrada viva após o silêncio profundo de uma pessoa. Deixei de existir depois que falei o que sentia. Uma longa carta não respondida me fez desaparecer e morrer (para todo o sempre) da vida dessa pessoa. Me sinto morta porque não existo mais na vida de alguém. Se aperta a tecla delete e adeus... Morri um pouco. Sou uma pessoa que se funde às atmosferas, por isso a tristeza; embora precisasse morrer. E já abandonei tanta gente pelo caminho apertando a mesma tecla; para esses eu peço o mais sincero perdão. É que não sabia como é morrer para alguém que se teve carinho.

biografia

Alguém que escreve uma biografia. Alguém que faz da vida de outra pessoa "fábula com carinho". Congela as melhores histórias, os fatos marcantes, as excentricidades do ser (amado) retratado. Alguém que organiza em capítulos o que foi uma dia a construção (acidental) espontânea da vida de determinada pessoa. Alguém que se dedica a pesquisar vida alheia. Trabalho de detetive, transformando em enredo circunstâncias propostas.
Mas em biografias se esquece o dia chuvoso, o não fazer nada, o band-aid usado com a sapatilha que machuca, a indisposição alimentar, o banho do dia a dia, o lixo da cozinha, o prazer entre as cobertas. Porque o que fica em biografias são os rastros autorizados ou a percepção de quem rodeia o ser ilustre. Mas a alergia à certos medicamentos, o soluço e o engasgar não são relatáveis e fenecem pelos cantos.

Esse texto é parte da minha frustração por não conhecer plenamente a alma de um ser querido após inúmeras biografias.

quarta-feira, fevereiro 17, 2010

caderno de perguntas

1) Ando com perguntas na cabeça. Perguntas pra entender o mundo. Perguntas necessárias para redescobrir-me depois que abandonei o que era um fato.

2) O fato não era fatal.

3) É engraçado deixar morrer alguma coisa que sempre julguei o fator estruturador da minha personalidade, a viga central. Essa coisa morre e se continua ali... quase firme. É como gosto de felicidade em casa nova: sem quadros e móveis, mas pronta pra ser decorada e habitada.

4) O "caderno de perguntas" - vou preenchendo o caderno, respondendo à perguntas que definam quem sou.

5) É só seguir a risca o número que aparecer para mim e ir detalhando o que me faz contente. Muitos outros já responderam e eu posso ler as escolhas deles.

6) Sou o n° 17 e revelo que gosto de sorvete de pistache e de sorvete de café, minha cidade preferida não existe mais... já foi Salvador, já foi Roma, hoje não sei. Ainda prefiro o calor ao frio, o verão ao inverno.

7) Mas algo muito forte mudou e quando aparecer a pergunta de n° 641, talvez eu possa responder se ainda engano meus sentidos ou se realmente aprendi a gostar do desengano.

dourado e azul escuro

Francesca abriu a porta e viu o que havia lá fora: uma escuridão de noite fria. "Amanhã haverá sol" - pensou. A noite estava tão cheia de estrelas que quase se via a Via Láctea - "um caminho esbranquiçado como leite", como dizia seu livro de ciências. Entrou no carro e colocando as mãos no volante gelado, lembrou do que sonhara. O que mais a impressionara no sonho fora a riqueza de detalhes com que aparecia seu porta níquel. E ela lembrava especialmente desse momento do sonho: pegava moedas para pagar qualquer besteira que mataria sua fome. E o objeto aparecia: azul escuro, em forma de dobradura, com estrelas douradas na parte superior, feito em couro por algum marroquino. Era o seu porta moedas anunciando o céu gigante de estrelas que ela veria quando abrisse a porta. Talvez o marroquino, numa noite como essa, tenha talhado de ouro aquele couro e registrado o que o olho dele via.

terça-feira, fevereiro 16, 2010

identidade

A menina fazia perguntas comparativas, sempre! Entendia o mundo apaixonadamente, dando valor afetivo às coisas e às pessoas. Sua mãe, por vezes entediava-se diante do interrogatório a que era submetida. Sua forma de entender às pessoas vinha das escolhas que o interrogado fazia. E disparava questões: "Você gosta mais de azul ou de verde?", "Macarrão de letrinha ou redondinho?", "Praia ou campo?", "Março ou novembro?", "Quem você acha mais bonito: Kleiton ou Kledir?", "Bolo de cenoura ou de chocolate?". Escolhendo respostas para satisfazer sua filha, a mãe refletia sobre si mesma. A menina cresceu e as perguntas apenas sofisticaram-se, "François Truffaut ou Jean Luc Godard?", mas continuaram. A menina muito cedo aprendeu a "ser alguém" buscando no mundo lá fora tudo o que ressoasse o mundo do aqui dentro.

domingo, fevereiro 14, 2010

auto-retrato no quintal

sábado, fevereiro 13, 2010

carnaval

No carnaval sempre tenho a sensação de que o mundo inteiro se diverte, menos eu. Talvez pela obrigação de felicidade que a data exige, talvez por não suportar a idéia de intensidade condensada; o fato é que no carnaval me sinto extremamente paulistana. Enquanto os outros jogam serpentina e o mundo se exacerba, a data me traz um desejo enorme de ficar na minha. Quietinha. Queria eu gostar de carnaval e entrar em sintonia com a maioria, vestir a fantasia... Mas minha vida de atriz já me deixa brincar de ser um outro no dia a dia. E, escorpiana, carrego sempre nas cores com que pinto esses dias... por isso, talvez, no carnaval eu fique cinza como o céu da minha cidade.

sexta-feira, fevereiro 12, 2010

membrana

Aquela mulher tinha as mãos finas. Mãos macias de pouco uso doméstico. A tinta do esmalte durava muito nas unhas daquela mulher. Ela não era dessas mulheres que não faziam serviços de casa por pura inconsequência ou futilidade; tinha a sorte de nunca ter precisado fazê-los... Alguém sempre os fazia por ela: de empregada doméstica ao próprio marido. Era uma mulher que passava longe do cloro, escovão ou sabão em pó. Também não tinha talento com a jardinagem, as plantas acabavam morrendo se fossem responsabilidade dela. Não sabia como regá-las e acabava por reunir todos os vasos no quintal para que a chuva se encarregasse de molhá-los.
Já disse que era uma mulher de unhas feitas. Era, também, uma mulher que cheirava bem, perfumada, engomada.
Mas essa mulher havia de comer feijão todos os dias! Se esquecia dos grãos, do ferro de cada dia, seus pés desprendiam do chão e, essa mulher, saía voando. Quem a via condenada de tal forma ao feijão, entendia que os gestos delicados daquela mulher não se tratavam de frescura; eram condinação da vida etérea a que ela pertencia. E olhando atentamente a mulher, o coração se enchia de dó e de respeito.

sábado, fevereiro 06, 2010

eu passarinho


Amo a palavra pássaros. Passarinho fica ainda mais bonitinho, leve e fugaz. Pajaros, pajaritos. No dia de hoje, pousando perto de mim, parecem que existem apenas pra me deixar feliz. E eu, existencialista, devolvo minha frase preferida, "eu passarinho".

sexta-feira, fevereiro 05, 2010

eu por Renata Velguim

quinta-feira, fevereiro 04, 2010

livro

Quando eu era criança, tinha a certeza de que as personagens dos livros depediam da minha leitura para existirem. Se por acaso passava mais de dois dias sem voltar ao livro, a situação me afligia por deixar suas criaturas presas ao contexto daquele capítulo. Era como se elas existissem e a minha não leitura prendia suas vidas ao momento em que eu parasse de ler. Imaginava suas vidas altamente sacrificadas e sem graça por culpa minha. Quando acontecia de não engatar a leitura, uma culpa enorme pairava sobre mim: sofria pela prematura morte de tédio que acometeria meus heróis.
Mas o melhor da minha infantil vida de leitora era a sensação de completude que cada livro me trazia. Vivia plenamente num outro planeta,em outro contexto por algumas horas do dia. E daí, a vontade de encontrar o livro e saborear uma outra vida me enchia de entusiamo.
Até hoje me sinto assim, plena quando esse tipo de encontro acontece. Quando ler um livro se parece mais com viver um livro.