quarta-feira, abril 30, 2008

roma

Tinha uma imagem de si de terceira pessoa. Ela era ela, mas também não era. Sabia que em algum lugar de sua personalidade mais profunda, havia um ser que tudo sabia e nada escondia.
Gostava de imaginar o que aquele super-ser faria quando a dúvida aparecia.
Às vezes, agia como quem esconde de si sua parte mais concisa e competente. Para aquela parte dela que em nada excedia, o mundo estava extremamente justo e de acordo. O desafio estava em se deixar guiar, cada vez mais, por essa inteireza. Abrir mão do que, um dia, disseram ser ela.
Fácil era abrir mão das fantasias alheias sobre o que ela seria. Difícil era destruir forma e conteúdo do que ela própria construiu para si; e se contentar em ser a grande ruína dela mesma. E seria tão bela, como belas são as ruínas de outras civilizações. Talvez mais belas e mais genuínas do que foram em atividade, mas agora com a austeridade própria das coisas que permanecem.

os outros

Tentava uma palavra e não acontecia. Concatenava uma palavra com outra e a frase não nascia. Depois de dedilhar inutilmente os dedos pelo teclado do computador, concluiu: existem os momentos de leitura e existem os momentos de escrever. Agora só podia ler porque a mágica da união das palavras não se fazia. E ler uma obra inteira de determinado autor dava uma certa confusão de linguagem. Um mal estar de se sentir um outro.

sexta-feira, abril 25, 2008

maneirismo

Acho bonito: seu sorriso, sua fala, seu jeito de andar, seu jeito de atender ao telefone, o modo como abre a porta do carro, a maneira como dorme, os trajes esfarrapados com que dorme, a maneira como prepara a comida, a voz suave que faz para falar com os bichinhos, suas unhas nunca feitas, seu mau humor matinal, sua timidez travestida de antipatia, a insegurança que vez por outra assola sua vida, as personagens que vive e inventa pra si mesma, sua transparência que não a ajuda a disfarçar seus desencantos e bravezas, seu lado fanático, sua porção descrente, o modo como muda de opinião facilmente quando admira o dono do novo argumento, sua preguiça em ler jornais, seu encanto por cinema, a maneira desregrada com que lê mil livros ao mesmo tempo, seu pavor em atender telefonemas, seu medo de fracassar, seu interesse por adivinhar a próxima música que vai tocar na rádio, sua fixação por certas pessoas, seu amor dedicado e interessado, o modo como escreve o nome de toda a família ao falar ao telefone, sua desproteção, sua suavidade, sua agressividade (que assusta pessoas desavisadas e crentes na sua habitual suavidade), seu medo de ladrão, sua coragem para matar baratas, seu destempero com certos tipos de mulheres, seus talentos, seu despreparo, sua mágoa, sua mágica de adolescente, sua crença em precisar do outro, sua força em dizer não.

criação

Nada a fazer, a não ser viver essa maré de água funda. Já me disseram que isso é excesso de energia criativa. E que, quem não faz obra de arte acaba fazendo filhos. O que não deixa de ser uma expressão de genuína criatividade.

terça-feira, abril 01, 2008

profissão de fé

O menino me disse que, quando crescesse, seria lixeiro ou caixa de supermercados. Achei bonito. Escolha de coração; pelo simples prazer e fruir da atividade. Pelo gozo da brincadeira. Lembrei de um tempo em que meu deleite era observar vendedores a fazer pacotes de presentes. Em casa, embrulhava todos os mimos que apareciam. Meu sonho era ter um porta durex profissional, como os que via nas lojas. E naquele tempo seria feliz em dedicar minha vida a papéis, durex, laços e posterior alegria do presenteado.