quarta-feira, dezembro 20, 2006

obras completas

Comprado o último volume, agora eram obras completas. Seu prazer era saber que tudo o que um dia ele escreveu, estava a sua disposição, próximo as suas mãos. Não sabia por onde começar. Decidiu ler tudo em ordem cronólogica, era como poder existir ao lado de seu escritor. Viveu com ele os primeiros escritos, casou-se, acompanhou questões estilísticas, teve filhos, veio o exílio, a dor da separação e teve de dizer adeus. Viveria tudo outra vez, só que agora faria diferente: sem exasperação começaria pelo fim.

coisa acontecida

Se se escreve, não se acredita. Vão dizer que é rima pobre, pueril. Pieguice de quem não conhece os mistérios da sutileza. Mas eu vi, e era tanta poesia que não cabia nesse mundo. Atravessando a rua, vi uma pequena menininha vendedora de flores. Estava suja e tinha o cabelo ralo. Puxava um fio amarrado a uma caixa de papelão. Dentro da caixa, vasos de flores coloridas. Era difícil puxar a caixa, não deixar as flores cairem e ainda ter atenção para não ser pisoteada por um monte de pedestres apressados. A menina era fato, coisa acontecida e o bairro, de nome não menos poético, era a Praça da Árvore. Avisei, se se escreve...

domingo, dezembro 17, 2006

leitmotiv

Gostava de colocar o fone de ouvido e andar pela rua. A música começava a tocar e, sem ninguém saber, acabava por criar trilha sonora para a vida alheia. Achava graça no tom dramático que um simples atravessar a rua poderia tomar. Pensava que dava sentido aos quadros que se formavam diante de sua retina. Era o seu jeito de amar e contribuir com o mundo.

ainda no metrô, questão de estilo

Eu vi. Vi dois garotos brincarem com o jeito enfadonho com que os condutores de metrô falam o nome das estações.
Um fazia o desafio e o outro desempenhava com extrema competência: "Estilo terror", e lá vinha um momento psicose: "Estaaaaaaaaaaaçãooooooo Ana Rosaaaa". "Estilo sexy", e o outro fazia:" Ah! estação Ana Rosa. Uh!".
Deveriam ser contratados, eram realmente muito bons.

sexta-feira, dezembro 15, 2006

boba

No metrô ela me olhava. Completamente vesga, me olhava como ninguém nunca fizera antes. Olhava e sorria. Não sei se era sorriso porque, boba que era, tinha a boca constantemente aberta. Num dia de sol escaldante, vestia uma saia pesada de lã que contrastava com sua leveza. Tudo nela era leve, tinha o semblante dos bobos, menos a saia e o olhar. E ela não parava de me olhar. Segurava uma garrafa de refrigerante e um saco de frutas que não lhe importavam, eram objetos completamente alheios a sua vontade de boba, foram colocados ali e ali estavam. E me olhava cada vez mais fundo. Não pude suportar aquele olhar. Eu, que sou escafandrista para as coisas da vida, desviei o olhar e desci na estação mais próxima.

espectro-lispector

Sentada num café, com pose de escritora, teve vontade de acender um cigarro. Ela que não fumava. Lispectorianamente escritora. Pensou nela que de tanta chama dentro de si, acabou por queimar-se por fora, dormiu com o cigarro aceso na mão.

quinta-feira, dezembro 14, 2006

05 de janeiro

Abriu a agenda velha num dia qualquer. Nenhuma anotação. Nada de lembretes ou compromissos para não esquecer. Um dia em branco, comum e branco, passado. Pensou que quando fosse velha, velhinha, bem velhinha ou quem sabe quando nem existisse mais, essa agenda serviria de documento histórico! Documento histórico! Rastros de seu dia a dia.
Então tratou de mentirosamente completar a folha branca com compromissos importantes e detalhes que julgava que a fariam uma pessoa interessante. Completava a agenda meticulosamente, invadindo dias e meses passados. Era o que tinha de fazer, afinal não se podia passar um vida assim em branco.

água ardente

Harmonizar tudo, harmonizar o ambiente, dormir e beber aguardente!

Desarmonizar tudo, desarmonizar o ambiente, sair e beber aguardente!

Cachorro é pra qualquer um

Cachorro é pra qualquer um, gato não. Gato exige mistérios que nem toda alma humana sabe dar. Gato já nasce sabendo os segredos do bem viver, mesmo os vagabundos carregam a herança das esfinges, já sabem que seu reinado se faz no presente, no aqui e agora, no sol de cada dia, na lambida fresca, no cheiro forte de seus hálitos.
Gatos entendem a alma humana e até acham graça; é por isso que muita gente não gosta de gato. Gatos, como eu, enxergam o estômago do mundo, sem dó nem piedade.
Meu gato falava, coisas que nem eu mesma poderia prever, entendia o momento do sim e do não e me dizia sim e não. Eu não precisava pedir, ele sabia e vinha quando queria. Mas gatos também têm de dizer adeus e quanta dor, meu Deus!

Os cachorros e donos de cachorros que me desculpem, mas gatos são fundamentais. Principalmente um certo gatinho que tanta falta me faz.

terça-feira, dezembro 12, 2006

sobre pídgin e o homem que distribuía guarda-chuvas

Pídgin: código que não tem falantes nativos, sempre utilizado, portanto, como segunda língua e que resulta do contato entre grupos falantes de línguas diferentes; língua de comércio, língua de contato.

Começo aqui meu pídgin, inofensivo, língua inventada. Será que ressoa?


Tenho vontade de falar do homem que distribuía guarda-chuvas. Um dia o vi sentado num trem com vários modelos envoltos em embalagem plástica. Ficava na porta de sua casa, sentado numa cadeira de pescador e esperava a chuva chegar. Começavam os primeiros pingos, ele se armava de seus guarda-chuvas e saía pelas ruas a distribui-los para os desprevinidos. Vez por outra, as mulheres queriam escolher modelos e cores; ele deixava e achava graça na vaidade feminina. Gostava mesmo de chuva grossa, daquelas de "encharcar os ossos", como dizia sua mãe. Nesses dias, cumpria seu dever feliz.
O homem não usava os guarda-chuvas, nunca, apenas os distribuía, gostava de voltar molhado para casa, molhar-se inteiramente. Sua felicidade era previnir os desprevinidos.